A disciplina de Filosofia do Direito atualmente é dividida em duas partes:
Eis a primeira:
Filosofia antiga: o fio condutor é a distinção entre filosofia e retórica, buscando situar a democracia neste debate. Sócrates e Platão acusam a democracia de determinar a verdade "contando conchas". Nada mais maléfico ao espírito e injusto, cujo exemplo mais dramático é o julgamento e morte de Sócrates. Os inimigos da razão são os sofistas, professores de retórica, mestres na arte do engodo e da enganação. A retórica permite ao desonesto convencer sua audiência que 2+2=5, em nome do auto-interesse. Como resposta a esse estado de coisas que leva à deterioração moral do indivíduo e, por conseqüência, da cidade, Platão propõe na República, com o perdão da expressão avant la lettre "fechar o Congresso", criando em seu lugar uma sociedade dividida em classes, com o filósofo, como o detentor da razão e conhecedor das verdades imutáveis, como governante.
Aristóteles entra no debate argumentando que o homem é um animal político, o que é dizer que sua posição é frontalmente anti-platônica e a discordância é uma discordância de fundo, da natureza das coisas. Sendo o homem um animal político não cabe à filosofia negar esse fato fundamental da existência humana, apenas reconhecê-lo. Antes de avançar na análise, convém perceber a diferença no contexto histórico no qual o debate ocorreu. Quando Platão escutava as conversas de Sócrates no mercado, Atenas era uma pequena, ainda que cosmopolita e influente cidade-estado. Quando Aristóteles escreve, o seu pupilo é imperador de uma vasta área que abrange incontáveis culturas e línguas. É verdade que a arte retórica serve para o engodo, para que o desonesto com recursos escape da punição - nisso Aristóteles (por motivos que veremos a seguir) concorda com Platão. Contudo, este se engana ao supor que toda a política é praticada nesses termos. Existe um espaço legítimo para o exercício da arte retórica, cuja orquestração de um imenso império multi-étnico era a prova mais cabal e evidente. A solução não deve ser, portanto, banir a retórica e a divergência e, com isso isso, o debate público da sociedade humana. Não se deve pressupor, num mundo contingente e incerto, que uma única classe detenha a verdade sobre os assuntos dos homens - verdades eternas e imutáveis. Reconhecendo um espaço legítimo para a arte retórica, isto é, para o exercício da política, Aristóteles trata antes de buscar qualificar o debate público do que bani-lo. Essa empresa é realizada nos seus livros de lógica - ainda que lá existam outros debates relacionados à argumentação científica e em sua Arte Retórica. A solução proposta por Aristóteles consiste em identificar o contexto onde ocorre o discurso, buscando analisar as diversas formas de argumentação, em especial as condições que tornam um argumento um bom argumento e os vícios de raciocínios, falácias, que tornam um argumento um mau argumento.
Portanto, a tarefa da filosofia proposta na solução de Aristóteles é qualificar o debate público mediante a construção de bons argumentos e a detecção de falácias nos maus argumentos.
11 de jul. de 2008
Férias: época de planejamento 2
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Programa interessante. Tu recomenda alguma edição em português da Retórica?
ResponderExcluirEu usei uma edição em inglês. Também gostaria de saber sobre uma boa edição em português.
ResponderExcluirComentário do Rapahel Zillig por e-mail:
ResponderExcluirOlá Fabian,
eu tendo a concordar contigo com relação tanto a Platão quanto a Aristóteles. No caso desse último, só quero notar que as motivações para a redação da "Retórica" são matéria de muita discussão. Pode não ser um consenso que Aristóteles, ao escrever essa obra, estivesse de fato indicando no debate público uma razão para o estudo da arte retórica. Eu acho que aquele artigo do Lord que eu te enviei dá umas dicas sobre essa discussão.
Retomando outras coisas que a gente conversou na lage da tua "Home in progress", fiquei pensando em outras coisas que podem ser úteis para esse teu curso de Filosofia do Direito e encontrei umas coisas interessantes que a Julia Annas escreveu sobre o conceito de justiça na "República" de Platão. Ela recusa a idéia segundo a qual a República não trata disso que nós chamamos de justiça. As diferenças de compreensão entre o que, em Platão, corresponderia à justiça e o que nós denominamos assim são entendidas pela Annas como variações do conceito geral de justiça. Olha como ela conclui a questão: "Justice is a virtue which regulates our relations with others. An expansive theory of justice will therefore make our relations with others central to the moral life, and tend to stress the individual's relations in society as partly constitutive of moral attitudes. Conversely, a theory which pays great attention to the uniqueness of each individual and the autonomy of his moral decisions will tend to give justice a restricted scope, and deny that the removal of injustice requires a moral reordering of the whole society. Because Plato's is an expansive theory, we can suspect form the start that he is going to pay less attention to individuality than western liberals have come to expect" (An Introduction to Plato's Republic, p. 13).
Eu acho interessante a postura de olhar para as obras do passado com a perspectiva de quem pode descobrir um pouco mais sobre, por exemplo, a justiça em geral do que seria possível examinando o conceito unicamente a partir do nosso contexto. O Terence Irwin, na introdução do primeiro volume de uma obra gigante sobre o Desenvolvimento da Ética (de Sócrates a Rawls) propõe essa postura de leitura. Ele diz que, longe de pretender examinar os filósofos do passado como se fossem nossos contemporâneos, a tarefa do historiador é "to discover the relatively permanent principles expressed in different intellectual and cultural embodiments" (The Developement of Ethics, p. 7).
Bom, é isso aí,
Abração,
Raphael
Minha resposta:
ResponderExcluirOi Raphael,
bem legais os teus comentários. Eu poderia publicá-los como comentário no blog? Tenho discutido esses assuntos também com o Xrmrr, daí ele também pode participar. Aliás, ele perguntou se eu conhecia uma boa tradução da Retórica para o português. E eu não conheço. Me recordo de ter te perguntado, mas não lembro a resposta.
Essa leitura de procurar elucidar um conceito sob várias perspectivas tem a sua formulação epistêmica mais rigorosa - até onde eu conheço - na leitura do Deleuze sobre a história da filosofia. O que é a filosofia?, livro da maturidade de Deleuze, apresenta essa maneira de elucidar um conceito como resposta ao que é filosofia. Um outro cara bem bacana é o Cossuta, que tem um livro que trata, aos moldes deleuzeanos, da pedagogia do conceito.
Com relação à polêmica sobre as motivações que levaram Aristóteles a escrever a sua Arte Retórica, o assunto me interessa muito, mesmo porque acredito que não seja mesmo possível encontrar uma resposta única para essa questão e uma controvérsia, ainda mais num assunto interessante, sempre pode render uma boa tese. Mas, no momento, o que me interessa mesmo é a experiência holística. Me parece que contar a história do nascimento da filosofia dessa forma e a síntese dela por Aristóteles torna ela interessante e, sobretudo, didática para estudantes de direito.
De qualquer forma, vou atrás das tuas dicas para poder dizer mais sobre o assunto. O livro da Julia Annas é de papel ou tens versão eletrônica? Achei bem interessante o contraste entre as teorias da justiça expansivas, poderíamos dizer, catequisadoras, versos as restritas. É legal contrastar os dois modelos, colocando de um lado platônicos e marxistas e do outro Sócrates e os liberais. Também uma boa maneira de introduzir uma discussão interessante sobre a ética.